Neste ano, o Brasil comemora os seus 200 anos de Independência. Um tempo propício para a sociedade brasileira e suas instituições democráticas analisarem, reavaliarem, fazerem um balanço dos anos de história e refletirem sobre o futuro rumo da nação.
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São diversos os desafios, principalmente quando a análise não é realizada superficialmente e perpassa todas as etapas de colonização ideológica que o país sofreu e sofre, e que atualmente agravou-se, gerando consequências nas relações desde a base que é a sociedade até às instituições políticas democráticas. Os fatos históricos não podem ser primariamente compreendidos e interpretados com hermenêuticas anacrônicas.
Quando analisamos sob o viés micro-regional observamos que estas colonizações ideológicas são o reflexo do que o mundo está vivendo atualmente: a dura realidade de uma Guerra, na qual o Papa Francisco recentemente ressaltou aos diplomatas da Santa Sé que a Europa e o mundo estão abalados por uma terceira guerra mundial “em pedaços”, de especial gravidade, de violações do direito internacional, causando riscos de uma escalada nuclear, seja pelas duras consequências econômicas e sociais.
É triste encarar essa realidade e perceber que o Mundo não está nada bem, que a sociedade está ferida e os países, principalmente Latino-americanos, dentro das suas peculiaridades regionais, encontram-se fragmentados, pelo surgimento dos neopopulismos de diversas sensibilidades, pelas disputas de poder e autoritarismos que tem consequentemente violado direitos fundamentais, conquistados em gerações passadas.
No Brasil as guerras ideológicas internas evidenciam raros espaços de recente florescimento da democracia, o cume do retrocesso econômico e social e a crise ética da defesa da vida humana e da Terra. O Papa Francisco, em seu novo livro, publicado recentemente e intitulado “Contra a guerra: a coragem de construir a paz”, afirma serem tantas guerras em ato neste momento, que causam enorme dor à vítimas inocentes, faz estragos em tudo o que é mais precioso sobre à terra, a vida humana, a inocência dos pequenos, a beleza da criação”. E de fato, utilizando-se dessa afirmação do Papa Francisco, “analogicamente”, são diversos atos de guerra, como os conflitos ideológicos, pondo em cheque a “dignidade de um povo” e seus direitos, culminando uma fratura social, conforme recorda os apelos dos Papas e Santos João XXIII, Paulo VI e João Paulo II, em que este último definiu “a guerra como uma aventura sem retorno”.
E ressaltar nesta sessão do bicentenário do Brasil é fazer memória das belíssimas palavras do Papa Francisco, no ano de 2017, ao escrever a apresentação do livro do Dr. Guzmán Carriquiry Lecour, intitulado Memória, Coragem e Esperança: a luz do Bicentenário da Independência da América Latina. Na apresentação o Papa Francisco ressalta o bicentenário do Brasil, que este ano estamos comemorando, dizendo:
Não é apenas uma questão de data, porque ainda ontem este importante evento foi celebrado apenas em alguns países da América Latina e suas comemorações no Chile, Peru, Brasil e toda a América Central estão previstas no horizonte próximo. Além disso, o conturbado caminho para a independência de nossos países, com suas marchas e retrocessos, sempre ameaçados por vários tipos de colonialismo, ainda não está completo. (grifo nosso)
Mesmo diante de tantos retrocessos passados e atuais que envolvem o Brasil, bem como de alguns progressos nos quais o povo foi o grande protagonista, discordo de alguns especialistas ao afirmarem que não temos nada a comemorar em relação ao Bicentenário do Brasil. Celebrar os 200 anos de Independência é fortalecer e buscar recuperar a nossa identidade diante de tantos acontecimentos que flagelaram o nosso povo. Esses 200 anos de independência não pertencem a um partido político, a um determinado governo ou mesmo a uma expressão ideológica. Mas pertencem ao povo brasileiro, principalmente àqueles que são expressão de superação e luta por maior justiça, equidade, liberdade e dignidade, mesmo quando alguns segmentos voltaram a confiar em ideologias que têm provocado fracasso econômico e devastações humanas.
Diálogo: ferramenta da Paz
Diante dos desafios microregionais, vividos em todo o Brasil, principalmente por causa daqueles que se manifestam por meio de violência e ódio, com indiferença e protesto violento, a esperança se manifesta principalmente quando voltamos o olhar para a história da humanidade e para a vida dos santos. Citamos como exemplo as pegadas de santidade de Charles de Foucauld. Olhar para a vida deste santo homem, é contemplar o “diálogo de vida”, um instrumento da paz e construção do bem comum. Foi um homem silencioso, homem de adoração e de oração, que se fez “irmão universal”. Ademais, era sempre acolhedor para com todos, se propunha a “gritar o Evangelho sobre os telhados com toda a minha vida”.
Apesar deste tempo de forte polarização, guerra ideológica, retrocessos, Fake News e outros pontos de tensão que dividem a sociedade brasileira, se faz necessário olhar para o Bicentenário da Independência do Brasil com esperança. Por muitas das vezes, na história do mundo, a mudança de época foi um marco para a conquista de direitos individuais e coletivos. E para colaborar positivamente com este tempo, é preciso abraçar o diálogo, como Foucauld, e nos tornarmos, assim, construtores da paz.
Dispor-se ao diálogo é romper com a lógica da polarização para dar lugar ao respeito, sem querer destruir o outro. Pode haver riqueza nas diferenças, mas se não houver diálogo, elas se convertem em hostilidade, ameaça e violência. O Papa Francisco ainda diz que “viemos de terras distantes, temos costumes, cor de pele, línguas e posição social diferentes; pensamos de forma diferente e até celebramos a fé com ritos diversos. E nada disso, nos torna inimigos, pelo contrário, é uma de nossas maiores riquezas.”
O diálogo autêntico, que não cede a monólogos paralelos, deve ser a nossa primeira opção para resolver os conflitos sociais, econômicos e políticos. Francisco, na Fratelli Tutti, aponta que “O diálogo social autêntico pressupõe a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro, aceitando a possibilidade de conter certas convicções ou interesses legítimos” (FT 203).
O padre Frédéric Fornos, SJ, Diretor Internacional da Rede Mundial de Oração do Papa, ressalta que todos os estudos acadêmicos internacionais mostram que a polarização cresceu muito nos últimos anos, mesmo nas democracias mais fortes. Por isso, ser arquitetos da amizade e da reconciliação – o que Francisco nos pede – é ainda mais urgente no mundo de hoje.
E diante deste tempo forte, das grandes dificuldades e agudas polarizações no Brasil, principalmente neste ano eleitoral, temos que levar a sério a reflexão deste marco histórico dos 200 anos de Independência do Brasil. É um tempo propício para não permitir que os erros do passado e presente possam perpetuar no futuro. Quantas violações de direitos fundamentais que ocorreram no passado sob a roupagem de “novas propostas” sacrificaram vidas. Um exemplo simples, mas de um absurdo sem tamanho, é que famílias perderam parentes e crianças tornaram-se órfãs de pais, pelo fato de terem sido vítimas do ódio político- partidário. Pessoas pobres sendo vítimas de humilhação por pensarem diferente e não terem a mesma opinião político partidária daqueles que as abordam. Infelizmente, as ideologias têm sacrificado vidas humanas em todos seus aspectos. E, principalmente, muitas vezes distorcem a realidade através de uma hermenêutica anacrônica.
O Papa Francisco, à época cardeal Bergoglio, no ano de 2011, no dia da festa de Nossa Senhora da Paz, ao escrever o prólogo da primeira edição do livro do Dr. Guzmán Carriquiry, mencionado na introdução deste texto, ressalta as consequências da hermenêutica ideológica. Dessa forma, ele assevera:
Em nosso tempo assistimos a este tipo de hermenêuticas ideológicas que, curiosamente, terminam associadas configurando o “pensamento único” montado sobre o divórcio entre intelligentia y ratio. A inteligência é fundamentalmente histórica. A ratio é instrumental para a inteligência, mas, quando se torna independente, procura sustentação na ideologia ou nas ciências sociais como pilares autônomos. O “pensamento único”, além de ser social e politicamente totalitário, tem uma estrutura gnóstica: não é humano; reemita as diversas formas de racionalismo absolutista […].
De fato, muitos fatores que alimentam a polarização atual é a ocorrência deste fenômeno.
Um olhar de esperança
É preciso voltar, retomar, sonhar e resgatar a nossa identidade de um povo acolhedor, que sonha, é sensível à dor do outro e que é humano. Humano em compreender o diferente e o respeitá-lo, não deixando que as ideologias sejam a regra de vida que conduzem suas atitudes e tomadas de decisão. Com estes 200 anos de respaldo, pede-se a nós continuarmos caminhando, olhar para frente.
O Bicentenário do Brasil é um tempo, sim, de esperança e esta é construída de forma gradual. Já vivemos altos e baixos no decorrer da história, porém, nunca houve desesperança. A própria história evidencia os anos de ditadura e a grande superação. A proclamação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, trouxe de volta a esperança ao povo brasileiro, inclusive consagrando os Direitos fundamentais.
Por fim, Dom Walmor, arcebispo de Belo Horizonte/MG e Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), exorta que o Grito de Independência que ecoou às margens do rio Ipiranga há 200 anos possa inspirar gestos cotidianos, capazes de fazer do Brasil uma nação cada vez mais soberana com menos desigualdades sociais mais justiça e paz. Que a celebração da Independência seja uma oportunidade de renovação do compromisso de cada brasileiro e brasileira na construção do país que todos queremos.
Por Alline Luiza de Abreu Silva. Professora Universitária; Mestre em Direito Público e Membro da Academia de Líderes Católicos do Brasil.